segunda-feira, 20 de junho de 2016

Coisas que Escrevo 53 - Outono.

Você já se perguntou "como seria sua vida se você pudesse estar em outro lugar que não ao qual você pertence"? Pois é, eu me faço essa pergunta todos os dias, desde quando eu olhei para o lado em que eu encontrei você e até agora eu não consegui encontrar uma resposta.

Eu levava minha vida como todos nós levamos.

Eu nasci numa terça feira qualquer, tive quem cuidasse de mim até que eu mesmo pudesse fazer as coisas sozinho, me alimentava, tomava meus banhos de sol quando de dia, a noite me refrescava com o orvalho que vinha fazer seu ciclo, agradecia quando vinham as chuvas depois de tempos terrivelmente quentes e quando vinham ventos fortes me segurava com os outros para que não perdêssemos nosso lar.

Eu levava minha vida como todos nós levamos.

Talvez por uma mera coincidência do destino, numa mesma terça feira, logo nas primeiras horas do amanhecer, eu estava me secando daquela chuva que veio durante a noite e distraído olhava em direção ao sul, que até então era de onde eu sabia que vinham os mais belos perfumes de tempos em tempos. E assim que os primeiros raios de sol iam adentrando a neblina que havia se formado durante uma noite serena eu percebi em nosso vizinho você ali desabrochar.

Eu levava minha vida como todos nós levamos, mas a partir desse momento tudo mudou.

É uma sensação tão engraçada quando nós tentamos descrever aquilo que não conseguimos entender. Eu me sentia tão cheio, mas não tinha comido nem bebido nada ainda naquela manhã. Eu me sentia flutuando, mas é claro que isso seria impossível porque eu não saberia voar mesmo que me dessem asas. Eu não conseguia me concentrar, porque tudo o que eu queria agora era lhe admirar. Eu não sabia mais o que fazer, sinto que só conseguia respirar.

Você é tão linda que eu não sabia nem como descrever e quando eu tentava lhe mostrar aos outros, ninguém entendia o que eu havia visto de diferente entre uma que era tão igual a qualquer outra. Eu achava um absurdo que ninguém notasse, mas acho que no fundo eu até que me contentava, porque se para tantos você era igual eu não teria o risco de alguém tentar lhe roubar de mim.

Roubar de mim? Como se você fosse minha não é? Engraçado de pensar em como damos o status de posse a algo que nunca será nosso. Você tem sua vida, seu trabalho, seus sonhos e tudo o que eu posso esperar é fazer parte de mesmo que seja de um grão da sua vida.  Mas eu não vou mentir porque era o que eu gostaria. Ter você só pra mim. Poder estar ao seu lado por todos os momentos e te mostrar que você é a flor mais perfumada dentre todas que possam existir no mundo.

Foi ai que eu percebi que isso nunca viria a acontecer.

Dor. Parecia que eu havia caído do topo do pico mais alto e me quebrado em milhões de pedaços. Como eu poderia? Ela é minha vizinha. E não é uma vizinha próxima, deve estar a uns 500 passos de formigas de distância e eu aqui, sem saber andar. Sem conseguir sair do lugar que estou desde que nasci por puro e simples capricho daquele que me criou. Porque ele me fez nascer assim? Porque ele me fez perceber agora que eu não sou completo?

Eu levava minha vida como todos nós levamos, e só agora ele me mostra que eu deveria ter algo a mais daquilo que me deu. Do jeito que ele me criou. Como posso agora tentar chegar até ela se não tenho meios para ir? Ou será que eu deveria suplicar para que chegue a minha hora logo e me tirem desse tormento que é lhe ver e não poder me aproximar de você? Dói muito quando percebemos que não temos meios para chegar aonde mais queríamos ir. Você já se sentiu assim? Eu já, e dói.

Então tudo o que eu pude fazer agora era levar minha vida como todos nós  levamos e pelo menos te admirar o quanto eu pudesse. Estar longe de você era a mesma realidade de antes, mas agora por eu saber que eu nunca chegaria até onde você estava me deixava cada vez mais enlouquecido. Não eram só dias tristes que viriam a passar, mas noites enraivecido e amanheceres melancólicos. Isso é claro sem falar nas tentativas de me mover, que se tornariam tão ineficazes quanto as tentativas dos animais tentarem devorar as taturanas.

Por quanto tempo eu iria ficar assim, talvez você me pergunte? Tudo mudou em uma terça feira.

Eu até certo ponto já tinha me conformado com a situação a qual eu deveria viver, e por conta das coisas em minha mente, eu comecei a não fazer as coisas básicas de meu dia a dia e nossa casa que era como um organismo vivo, que cada um dependia de seu outro para funcionar começou a perceber que algo ali não estava certo. Foi quando meu quadrigentésimo primo que fica logo ali atrás me perguntou  o que estava acontecendo para eu não fazer os meus trabalhos diários. Levei quase um dia inteiros para relatar todos os acontecimentos que descrevi até agora, afinal foi a primeira história que eu tinha para contar além de explicar detalhadamente como funcionam meus dias para os que vinham se alimentar. Ele ouviu detalhadamente cada trecho de minha história mas como não fazia nenhum sinal de que estava realmente ouvindo, me levava a diversas interrupções em meu relato em que lhe dirigia a frase "você está me ouvindo?" e em resposta um simples "prontamente" vinha de sua direção. Quando terminei de lhe contar, sua resposta me fez decidir sobre como eu terminaria meus dias.

"Primo, eu já ouvi de Nina Andorinha, uma história bem parecida com a qual você me diz que está a passar. Bem, não me parece algo comum algum de nós querer ir se encontrar com uma vizinha mas de acordo com a história de Nina Andorinha um de nossos tataravós já passou por essa mesma lamúria e a única solução que encontrou para seu lamento foi deixar de viver. Pode lhe parecer triste, mas ela me contou, que quando ele começou a deixar de viver, sofreu os pesares da fome, sede, começou a ter seu corpo enrijecido e por mais que tentassem argumentar com ele, ele só clamava que queria ir embora. Não demorou muito e nossa família teve que decidir se perderia tudo o que tinha ou se o jogava de encontro ao Campo, e você bem sabe que damos Adeus para os que vão para lá por ser para um lugar que nunca ninguém vai voltar. Ele foi descartado e jogado de encontro ao Campo por estar a prejudicar a todos nós, mas foi aí que aconteceu. Ele voou primo. Não foi belo como vemos o bater de asas dos pássaros, e Deus sabe que nunca seria tão graciosos como Nina Andorinha, mas ele vou. Foi carregado em direção daquela que ele sempre disse ser sua única, por algo mais forte que tudo o que conhecemos. E o perderam de vista quando ele chegou na vizinhança de sua amada. Por alguma razão que ninguém arriscara dizer, naquele momento ficou claro que ele não nascera pra ficar, mas sim para se mudar."

Eu já havia tomado minha decisão quando meu primo havia terminado de falar e ali parei.

Você já morreu alguma vez?

Acho que é por isso que esse foi a única vez da que se teve notícia de alguém fazer algo assim. Claro que todos acabam morrendo um dia, e quando esse momento chega, todos vão para o Campo, mas adiantar isso por vontade própria, fazer suicídio só por saber que ali não é seu lugar é algo doentio não é? Será? Eu não sou completo. Eu não estou feliz. Eu não sou isso. Que felicidade eu poderia ter dali para frente, uma vez que eu sabia que não pertencia mais àquele lugar. Arriscar tudo por algo que eu nem saberia se era verdade me motivou mais do que a vontade de levar meus dias sabendo que seria infeliz até o momento de ir para o Campo. Eu desisti de viver.

É indescritível o quanto machuca. A sede, a fome, a dor, nem se comparam com o instinto de deixar de lado essa maluquice e se agarrar a nem que seja uma gota de orvalho e tentar mesmo que inutilmente saciar um pouco de nossas necessidade. Eu tinha vontade de gritar a cada segundo, eu chorava em cada instante, eu lutava contra meus instintos mais básicos e tudo para que? Por alguém que nem sabia de minha existência! Alguém que nem me notaria! E depois disso? Eu milagrosamente ia sair voando até ela e depois? Eu estava me matando! Deixaria minha família me jogar fora para não acabar com tudo o que temos, sendo que eu nem mesmo sabia se meu amor era real! Amor? Isso existe mesmo? Não! Tenho que parar com esse absurdo! Eu preciso viver! Eu não aguento minha fome! Por favor me tirem desde inverno!

Em meio ao meu desespero, logo nas primeiras horas do amanhecer eu senti então seu perfume. Eu não vou desistir.

Eu conseguia sentir meu corpo se enrijecendo e ficando de cor amarelada. A dor já era tamanhã que eu não tinha forças mais para aguentar e só desisti de ir contra. Não tinha mais motivos para gritar ou me lamentar, porque eu sabia que a partir daquele momento eu já não teria mais como voltar e tudo o que pude fazer foi observar.

Vi todos que me viram nascer pararem por um instante para decidir se realmente era algo que não teria volta. Como eu já não conseguia mais falar eu me despedi sem fazer um único som ou movimento e logo em seguida eu fui cortado. Minha visão ficou cada vez mais turva e era difícil distinguir o que estava acontecendo, mas eu sabia que estavam me levando. Me levando para a ponta. Me levaram em direção ao Campo. Eu já nem me lembrava do porque estava fazendo tudo aquilo. Não tinha mais forças para esboçar nenhum movimento. Meu corpo seco e de cor amarelada se quebrava durante o caminho. Eu só queria que terminasse, e que terminasse logo.

Quando chegamos à ponta e finalmente me jogaram eu então senti. Acabou.

Nos momentos em que fui caindo, eu conseguia ver lá de baixo minha casa. Minha família cada vez mais distante agora, me fazia lembrar de tudo o que eu já havia passado. Claro! Voar! É agora! O Momento pelo qual eu estava esperando e me sacrifiquei para tentar encontrar. Mas como eu vou voar? O que devo fazer? Tento e tento me movimentar ou fazer alguma coisa que só agora em que sinto o vento passar por mim poderia fazer sentido, mas nada acontece! Nada! Eu estou cada vez mais perto do Campo e nada acontece. Eu não nasci pra voar? Arrisquei tudo por algo que não era para mim! O que eu devo fazer? Não agora! Não assim! Eu nem mesmo pude lhe ver uma última vez. Acabou. E porque mesmo tudo acabou? Ah, é mesmo. Eu olhei para o sul e pude ver nossa vizinha agora. No meio do fim eu lhe vi uma ultima vez e você assim como na primeira vez, continuava linda. Mas agora acabou, não tenho mais para onde ir e estou muito cansado. Vou dormir até acabar. Fechei meus olhos. E tudo o que consegui fazer foi esperar. Não sei exatamente pelo que, mas eu esperei que nunca mais pudesse abrir meus olhos. Esperei que como o sol desaparece no horizonte eu também deixaria de existir. Mas não é bem isso que acontece não é? O Sol não desaparece, ele só se muda.

Foi quando mudei.

Algum ímpeto me fez abrir os olhos e eu pude ver que ao invés de estar mais próximo do Campo, eu estava subindo! Eu estava me elevando aos céus como um pássaro desengonçado, mas o mais importante era que eu estava voando! Como? Eu não conseguia entender e me perguntava a todo instante do por que? Eu já tinha desistido, cansado, quebrado, sofrido e ainda sim não estava terminado! Eu estava a voar! Mas como?

A compreensão me bateu como um raio e eu finalmente entendi. Não era eu que estava voando, mas sim o vento que estava me levando. Por mais que eu estivesse tentando me direcionar para algum lugar, eu não tinha controle nenhum do para onde eu estava indo, e era essa a explicação a qual cheguei. Talvez por pura coincidência, mas uma corrente de ar passou quando eu estava a cair e acabou de me levar com ela para onde ela iria. Com nosso tataravô deve ter acontecido a mesma coisa, e como os outros não tinham ideia do que estava acontecendo, devem ter imaginado que um milagre poderia ter acontecido. Mas é só um vento me levando. Mas espera? Está me levando para onde? Meu tataravô conseguiu ir pelo menos de encontro a sua amada não foi? Eu também posso conseguir! Se esses ventos me levarem há 500 passos de formigas em direção ao Sul!?

Eu nunca fiquei tão ansioso em conseguir algo como fiquei naquele instante. Eu podia ver que a cada segundo eu começava a me aproximar mais e mais de minha vizinha. Eu estava tão alto agora que conseguia ver a distância exata de onde eu estava e meu objetivo. Eu não controlava meu caminho, mas ele me levava exatamente onde meu coração desejava. Eu tentava fazer cálculos de cabeça, 450, 400, 300 passos de formiga. Será isso mesmo? Eu estou chegando! Eu estou tão perto agora que eu consigo lhe sentir por perto! Foi quando aconteceu.

Senti um pingo de chuva. Vi um trovão cruzar os céus. Ouvi o rugido de sua chegada. E assim como subi rapidamente pelo vento abaixo de mim, senti o peso das gotas da chuva me levarem para o chão. A queda foi muito mais rápida agora, somando meu peso  mais as gotas de chuva sobre mim me levou a uma queda direta e reta. Estou nos Campos. Acabou. Consigo sentir as fortes gotas de chuva em meu corpo agora sozinho. Estou tão longe de casa, mas tão perto da vizinha. Se eu fosse contar, seriam acredito que 75 pequenos passos até eu estar lá. Mas ela ainda é tão alta. Eu não conseguiria chegar onde minha amada está vindo de onde estou. Acabou. Eu tive alguns segundos de esperança, para terminar aqui, no Campo. Pelo menos com a chuva eu consigo saciar um pouco de minha sede. E estranhamente o lugar a qual estou deitado faz com que eu tenha vontade de me alimentar. Será que é isso que mata aqueles que vão para o Campo? Será que tem algo nocivo a minha vida se eu me alimentar disso? Que diferença faria agora? Chega. Eu cansei de tentar. Apostei todas as minhas forças em uma loucura e estou aqui. Sozinho.

Apesar de estar tão perto, eu estava tão longe agora. Olhava para minha casa ainda mais longe e memórias de minha singela vida me vinham na memória. Eu levava minha vida como todos nós deveríamos ter levado e agora eu estava ali. Sozinho. Eu desisti de acreditar e me entreguei ao destino que me forcei. Tudo o que eu queria era estar do seu lado e sentir pela última vez seu perfume, mas tudo o que eu sinto são gotas de chuva que caem em mim, como lágrimas tristes num dia nublado. Sinto a lama me puxar para o fim e eu não tenho força e nem vontade de resistir. Como é horrível a sensação de desistir depois de tanto lutar. Mas o que eu poderia fazer? Eu perdi você e nem ao menos consegui te ver uma última vez, e agora eu só quero deixar de existir enquanto eu sinto seu perfume. Como ele é gostoso. Eu queria dizer à você o quanto seu perfume é perfeito. Perfume. Mas o que?

É você!? Você está nos Campos comigo!? Como!? Por que!? Mas desse jeito seus dias!? Sua vida, sua família, tudo em você vai terminar aqui comigo!? Por que!? Você nem sabe quem eu sou!?

"Tudo o que sei, é que eu daria minha vida para viver ao seu lado. E se você não estiver comigo eu nunca poderei viver feliz. Não foi só você que me observou. Eu estive te vendo durante todo esse tempo, e apesar de também viver fadada a não poder me mover e só a levar meu perfume a você. Agora que você chegou tão perto, eu não iria lhe deixar sem dizer que eu vim para estar com você. Se não foi enquanto estávamos em nossa casa, nos galhos que nos deixavam viver, será nesses últimos instantes enquanto partilhamos esse lindo campo que um dia será todo florido por nosso amor. Eu sempre lhe amei minha pequena folha e por você eu viverei para sempre do seu lado, mesmo que meu sempre sejam só mais alguns momentos."

"Eu sempre vou lhe amar minha flor e lhe prometo que não lhe deixarei por mais nenhum dia. De algum modo agora que tenho você, eu não vou desistir de crescer e te dar o melhor lugar do mundo."    
No meu último instante você largou tudo para morrer ao meu lado. O engraçado é que as coisas não foram exatamente assim. A chuva nos deu o que beber e viria a nos hidratar de tempos em tempos, os Campos nos deram alimentos que precisávamos para sobreviver. Nosso amor nos fortaleceu para que conseguíssemos seguir a um passo adiante. Tivemos o suficiente para fazer brotar uma pequena raiz. Dessa raiz um pequeno broto. Do broto uma muda e só continuamos a crescer.

Hoje nossa pequena casa se juntou a sua árvore, minha vizinha e nos entrelaçamos. Daqui de cima eu posso ver minha antiga casa, minha família e com você ao meu lado, eu sei que posso transmitir que eu consegui, que eu estou bem e que estou muito feliz. Afinal o seu perfume e de todas nossas filhas, sempre ao amanhecer, faz com que seu perfume vá em direção ao Norte. Foi numa terça feira que eu voltei a levar a vida que todos nós levaríamos. Até o fim de nossos dias.


Fernando Vilela Paciencia.



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